Contextualização da Orestéia: Sobre a Guerra de Tróia, o Sacrifício de Ifigênia e a Maldição de Cassandra
Na introdução, falar-se-á resumidamente da influência do mito e do épico no desenvolvimento do enredo da tragédia ática. Em seguida veremos versões míticas da (1) Guerra de Tróia; do (2) Sacrifício de Ifigênia; e da (3) Maldição de Cassandra e algumas passagens correspondentes da Orestéia.
A tradição dramática na ática tratava os contos míticos e épicos como a base sobre a qual os dramaturgos construíam suas peças. E não é a toa que as fontes míticas e épicas são o pano de fundo da maioria da peças conhecidas por nosso tempo, excetuando-se talvez àquelas que tinham base nos escritos de Heródoto ou vertiam-se em acontecimentos recentes do século IV e V a.C., tal como “Os Persas” de Ésquilo – como nos lembra Sommerstein. Elas contavam a história do passado grego, continham os ensinamentos antigos, e ao mesmo tempo mantinham a identidade grega. As histórias do passado funcionavam como o pano de fundo da mensagem do poeta trágico. Servia-lhe, na medida em que poderia transmitir a mensagem do autor.
Por conta disso, para haver qualquer compreensão mais aprofundada sobre a tragédia ática, é antes necessária a compreensão deste background mítico e épico. Tanto para compreender a narrativa quanto para alcançar a mensagem do poeta.
(1) A Guerra de Tróia:
A Guerra de Tróia é contada em conjunto por diversos mitos, e pelos épicos de Homero – a Ilíada e a Odisséia. No primeiro, conta-se o relato do último ano, dos dez empregados na Guerra de Tróia; e no segundo, trazem-se os acontecimentos dos dez anos do regresso de Odisseu à Ítaca, bem como outras conseqüências da Guerra. Dentre elas, traz o relato da morte de Agamêmnon.
É possível iniciar essa história a partir do mito do pomo dourado. No casamento da nereida Tétis com o mortal Peleu (união da qual nasceria Aquiles) foram convidados todos os deuses, exceto a Discórdia. Para vingar-se, a deusa deixou cair sobre a mesa da festa um pomo dourado com os dizeres “a mais bela”. Imediatamente, todas as deusas presentes disputaram o objeto e o título, e a contenda mais acirrada deu-se entre Hera, Atena e Afrodite. As deusas não conseguiram que Zeus decidisse o embate, e procuraram pelo mortal Páris, um jovem pastor, para que escolhesse, dentre elas, a deusa mais bela. Páris acabou por entregar o pomo à Afrodite, guardando ao mesmo tempo sua benção e a inimizade de Atena e Hera. Afrodite cumpriu sua promessa ao mortal concedendo-lhe sua proteção e, no futuro, a união com a mulher mais bela.
O jovem pastor Páris era, na verdade, filho do rei de Tróia, Príamo. Ele fora abandonado quando criança pela mãe, Hécuba, após o rei ordenar sua morte por conta de um oráculo. Este oráculo referia-se a Páris como o príncipe que causaria a desgraça de Tróia. No entanto, depois de adulto, Páris regressou ao palácio, reconhecido pelo rei e recebido no convívio entre os seus. Um dia, foi mandado à casa de Menelau, rei de Esparta, e lá conheceu Helena – a mulher mais bela, prometida por Afrodite.
Assim, segue-se à seqüência do seqüestro de Helena à Tróia, que motiva Menelau a procurar por Agamêmnon, para que se reunisse um exército grego que restituísse a honra ao reino de Esparta.
O relato de Páris e Helena é trazido esporadicamente à peça Agamêmnon pela fala do coro, ao se referirem às motivações e conseqüências da Guerra. A primeira referência é feita já no verso 62, na tradução de Lattimore (p. 41, v. 60-65): “So drives Zeus the great guest god / the Atreidae against Alexander: / for one woman’s promiscuous sake / the struggling masses, legs tired, / knees grinding in dust, / Spears broken in onset” (grifo nosso). Um trecho que na versão em grego: πολυάνορος ἀμφὶ γυναικὸς (polyánopos amphì gynaikòs), estaria relacionado à “mulher de muitos homens de ambos os lados”, que trouxe grandes perdas para gregos e troianos.
Dentre várias referências a Páris, destacamos a passagem: “No god Will hear such a man’s entreaty, / but whoso turns these ways / they strike him down in his wickedness. / This was
Estes relatos formam a compreensão do ciclo gerado pelo destino daqueles que cometem crimes e afrontas às leis divinas, cuja punição gera por si própria, a necessidade de cumprir-se vingança contra os vingadores. Após o rapto de Helena, Menelau procura pela ajuda de seu irmão Agamêmnon. Então o rei de Argos reúne toda a Grécia, seus reis e seus reinos, na campanha contra Tróia. A extensão desse exército grego é considerada, a partir da leitura de Homero, a maior frota já construída e o segundo canto da Ilíada narra precisamente todas as naus, seus reis, povos e terras de origem, que partiram para a Guerra.
Durante a Guerra de Tróia, os exércitos gregos cometeram diversos crimes contra os templos – as casas dos deuses – terminando por destruir e pilhar o templo de Atena. Este feito é apresentado como fator determinante para a destruição das naus gregas no mar, durante o retorno vitorioso da Guerra. O único navio que sobreviveu à tempestade foi de Agamêmnon. Nos versos
A confirmação da destruição das hostes gregas vem um pouco mais adiante, no segundo episódio. O Arauto descreve, dos versos
Nesta campanha, Agamêmnon recebeu o comando das hostes gregas e a posição de Rei-General, comandante de todos os reis da Grécia. Seus grandes feitos na Guerra de Tróia são primordialmente contados na Ilíada, de Homero. Enquanto sua morte, após seu retorno à Grécia e ao palácio de Argos, é trazida pelas rimas da Odisséia. Segundo a mitologia, Agamêmnon, ao regressar vitorioso da maior guerra já conhecida, é morto em sua própria casa por sua esposa, Clitemnestra. Conta-se que durante o descanso do Rei, Clitemnestra joga uma rede sobre o marido e o assassina com a ajuda de Egisto, primo do rei e amante da rainha.
Na Orestéia a cena do assassinato de Agamêmnon está subentendida. Clitemnestra entra no palácio logo após o rei, revelando ao público sua verdadeira intenção. Ouve-se um grito e Clitemnestra sai. Apresenta suas justificações perante o duplo assassinato – de Agamêmnon e de Cassandra. Trata-se também de uma dupla vingança. Egisto, no último episódio, toma os atos de Clitemnestra para si, e diz-se executor da vingança pelo seu pai, Tiestes. Tiestes sofreu uma terrível vingança de Atreu– pai de Agamêmnon e Menelau. Para retribuir uma traição, Atreu cozinhou e serviu a carne dos filhos do irmão ao próprio Tiestes, contando-lhe, mais tarde, o que havia feito. Tiestes cometeu suicídio, mas antes rogou uma maldição contra Atreu. Estes seriam atos de continuidade e perpetuação da Maldição dos Atridas.
Clitemnestra, por sua vez, apresenta as razões do assassinato como vingança pela morte de sua filha mais velha, Ifigênia, já no quinto episódio. Em suas razões, Agamêmnon merecia a vingança por ter sacrificado a própria filha para realizar a campanha contra Tróia: “Now hear you this, the right behind my sacrament: / By my child’s Justice driven to fulfilment, by / her Wrath and Fury, to whom I sacrificed this man, / the hope that walks my chambers is not traced with fear” (LATTIMORE, p. 91, v. 1431-1434).
(2) O Sacrifício de Ifigênia:
Reunido o exército grego, Agamêmnon preparava-se para partir dos portos de Áulis, na Beócia. Porém as naus foram obrigadas a manterem-se aportadas devido a fortes ventos contrários. Agamêmnon haveria despertado a fúria de Artêmis ao caçar e matar um de seus cervos. A deusa então não permitiria que os gregos partissem para Tróia, exceto pelo alto sacrifício de uma virgem. A moça indicada era a própria filha de Agamêmnon, Ifigênia. Ainda sob o pesar do sacrifício, Agamêmnon decidiu então por manter sua missão à Guerra e mandou que Odisseu buscasse Ifigênia
Na versão de Ésquilo, a fúria de Artêmis seria causada não por uma ação passada de Agamêmnon, mas pelos seus crimes futuros – por todas as mortes e destruições causadas pela guerra. Esta indicação aparece na forma de um oráculo de Calcas, ao interpretar o assassinato de uma lebre grávida por duas águias. A predição de Calcas está narrada na fala do coro nos versos
Essas considerações apresentam à tragédia a possibilidade de que as ações dos gregos fossem desproporcionais à provocação. A destruição causada pela Guerra de Tróia transporia de alguma forma os limites do justificável. Essa sugestão é trazida novamente pelo coro, que apresenta Ifigênia apenas como o primeiro sacrifício dos gregos por conta de Helena: “The sickening in men’s minds, tough, / reckless in fresh cruelty brings daring. He endured then / to sacrifice his daugther / to stay the strength of war waged for a woman, / first offering for the ship’s sake” (LATTIMORE, p. 45, v. 222-226).
(3) A Maldição de Cassandra:
Cassandra, filha de Príamo, recebeu de Apolo o dom da vidência. O deus apaixonara-se pela grande beleza da princesa, que, no entanto recusou seu cortejo. Ofendido, Apolo condenou-a a profetizar sempre a verdade, sem que jamais fosse acreditada. Dentre vários oráculos, Cassandra profetizou com precisão a Guerra de Tróia, o homicídio de Ifigênia e a verdadeira natureza do Cavalo de Tróia, bem como a queda de sua cidade. Como já não era possível que lhe entendessem, ela foi tomada como louca e isolada do convívio com os demais. Após a queda de Tróia, Cassandra foi entregue a Agamêmnon como parte do espólio, tornando-se sua escrava. Assim, a princesa foi levada à Argos onde encontraria sua morte nas mãos de Clitemnestra.
Na Orestéia, Cassandra apresenta suas previsões para o futuro e adivinhações do passado no quarto episódio. Percebe o nume e as eríneas que habitam o palácio de Argos, bem como a Maldição dos Atridas e o Festim de Tiestes; atribui a Apolo o artifício que levou à sua morte; e antevê o assassinato de Agamêmnon, bem como sua própria morte, pelas mãos de Clitemnestra. Todo seu oráculo pode resumir-se em uma longa fala, que segue dos versos
Bibliografia:
- LATTIMORE,
- ÉSQUILO. Orestéia: Agamêmnon, Coéforas e Eumênides. Trad. Jaa Torrano. São Paulo: Iluminuras, 2004.
- AESCHYLUS. Oresteia: Agamemnon, Libation Bearers, Eumenides. Trad. Herbert Weir Smyth. Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu
- AESCHYLUS. Oresteia: Agamémnon, Coéforas, Eumênides (em grego). Disponível em: http://www.perseus.tufts.edu/
- “Tragedy and Myth”, de Alan H. Sommerstein. In: Blackwell Companion to Tragedy.
- COMMELIN, P. Mitologia Grega e Romana. Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes. 1997.
- COTTERELL, Arthur. Enciclopédia de Mitologia. Trad. Margarida Vale de Gato. Central de Livros. 1998.
Muito boa a sua postagem, Fernanda. Parabéns!
ResponderExcluirAcho que ficou bom. Mas faltaram as referências da Ilíada e da Odisseia e as traduções das passagens do Lattimore.
ResponderExcluirEu pessoalmente senti falta de que você comentasse sobre os aspectos simbólicos dos mitos e lendas a que se referiu. Por exemplo, até que ponto o sacrifício de Ifigênia tem a ver com a necessidade de sacrificar a si próprio, sua família, sua cidade, para tornar possível uma grande conquista exterior? Ou ainda em que medida a maldição de Cassandra é uma representação da incongruência entre a visão dos deuses e a visão dos homens? Acho que isso não apenas teria tornado a postagem mais interessante, mas também contribuiria para a aplicação desses relatos à caracterização geral da mensagem da Oresteia. Bjs
ResponderExcluirCom relação ao verso que você cita ao final, em que Cassandra prevê a vingança de Orestes (mas, o que é relevante, não sua posterior salvação), a linha "Outlaw and wanderer" seria a tradução de Lattimore para "φυγὰς δ᾽ ἀλήτης"? É que eu achei bastante sugestiva a passagem e fui ver a correspondência no texto helênico. Só que o dicionário que estou consultando dá "fugitivo", e não "fora da lei", como tradução de φυγὰς e dá "vagabundo", e não "andarilho", como tradução de ἀλήτης. Eu que entendi errado e a tradução está mesmo certinha, a tradução que está errada ou eu que tenho que trocar de dicionário?
ResponderExcluirDébora: 'Brigada! Pena que ela ainda está incompleta.
ResponderExcluirAndré: Isso é verdade, trabalharei nas modificações!
Linda(1): Pretendo montar essas construções em uma segunda postagem complementar, considerando também a imensidão de inclusões que esta primeira merece. Obrigada pelas sugestões, elas são ótimas!
Linda(2): Eu ainda não verifiquei nos meus dicionários o significado de phygàs, desculpe. Mas a primeira vista eu consideraria que Lattimore pode ter feito muito mais uma opção 'artística' que verossímil. Ou teve outras fontes, ou ainda outra interpretação para o que Orestes seria nessa passagem. De minha parte, eu optaria pela interpretação a partir de "andarilho" ou "fugitivo", supondo também a veracidade de suas fontes.