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(V / V) Bradley - Conferência I "A substância da tragédia shakespeariana"

BRADLEY, A. C. A Tragédia Shakesperiana. Trad. Alexandre Feitosa Rosas. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 3-27. Conferência I – A substância da tragédia shakespeariana.

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Uma idéia de destino e a ordem moral/moralizante:

A idéia moralizante seria capaz de iluminar fenômenos trágicos que ficam obscuros pela idéia de destino. E o argumento produzido com isso seria (p. 22):

O que quer que possa ser dito dos acidentes, circunstancias e coisas do gênero, a ação humana nos é apresentada, afinal, como o fenômeno central da tragédia, e também como a causa principal da catástrofe. Esse imperativo que tanto nos impressiona é, no fim das contas, basicamente o nexo necessário entre ato e conseqüência. Consideramos o agente responsável pelos atos que pratica, sem sequer levantar dúvida sobre isso; e a tragédia desapareceria para nós caso não o fizéssemos. O ato crítico é, em maior ou menor grau, errado ou mal. A catástrofe é, basicamente, a reação ao ato abatendo-se sobre a cabeça do agente. É um exemplo de justiça; e a ordem que, presente tanto dentro dos agentes quanto fora deles, faz com que se cumpra infalivelmente, é, portanto, justa. O rigor de sua justiça é terrível, sem dúvida, pois a tragédia é uma história terrível; mas, a despeito do medo e da compaixão, conta com nossa aquiescência, porque nosso senso de justiça é satisfeito.

Mas para que este enfoque se revele procedente, a justiça da qual se fala não pode ser a “justiça poética”, pois nela a prosperidade e a adversidade são distribuídas proporcionalmente ao mérito dos agentes. Não corresponde à vida humana, tampouco à representação trágica dela construída por Shakespeare. O agente sofre, a vilania não triunfa e nem prevalece no final, mas não existe uma distribuição de sofrimento e felicidade proporcional ao mérito. Na análise de qualquer de seus personagens não se pode acusar Shakespeare de poeticamente justo.

Seria um erro descrever o trágico em termos de mérito, justiça e recompensa. Primeiro, há nexo de causa e conseqüência, mas não é natural dizer que as conseqüências e o caos que atinge as personagens seja merecido. As conseqüências dos atos não se limitam ao que parece o ‘justo’, e usar este termo seria empregar a ele um sentido vago, ou apelar para algo fora dessa ordem em que se coloca o fenômeno trágico. Em segundo lugar, a idéia de justiça e merecimento não faz jus à experiência imaginativa em nenhum dos exemplos, nem mesmo nos casos de Ricardo III, Macbeth e Lady Macbeth.

Uma tragédia pode despertar diversos sentimentos, entre atração, repulsa, medo, horror, compaixão, admiração etc., mas não aufere julgamento. O julgamento só ocorre por falha do expectador ou do dramaturgo, quando desloca-se da posição trágica ou em reflexão a posteriori da peça, recorrendo a conceitos jurídico-morais. Tragédia e religião não pertencem à esfera destes conceitos jurídico-morais, nem a atitude imaginativa diante da tragédia.

Na análise do trágico, observa-se aquilo que acontece como algo que aconteceu e deveria ter acontecido, participa-se mentalmente vivenciando os sentimentos explorados no trágico sem, contudo, julgar os agentes e questionar a ação do poder supremo sobre eles como sendo justa.

Há este ponto de distinção entre a tragédia shakespeariana e as tragédias gregas. A tragédia grega causa referência necessária às questões de justiça e merecimento, não só por causa das constantes menções a ela pelas personagens, mas como o próprio problema trágico tem algo de ‘causuístico’. O dramaturgo cria sua tragédia de modo que as questões morais da ação do herói sejam relevantes. Isso não se dá em Shakespeare, Júlio César seria um caso único em que essa questão se insinua adquirindo por isso um ar clássico, mas mesmo neste caso não haveria dúvida quanto a esta diferença (nota 13).

Reformulando a idéia de que o poder supremo na tragédia seja uma ordem moral:

Primeiro deve-se construir a idéia de bem e mal considerados moralmente, mas também como toda a excelência humana (bem) e seu oposto (mal), no lugar de justiça e mérito. Em seguida, entender a ordem moral como afeita ao bem e hostil ao mal. Não sendo, portanto, indiferente ou neutra, não favorável ou desfavorável igualmente a ambos. Dessa forma, o que fundamentaria esta ordem moral na tragédia shakespeariana? E como lidar com os fundamentos em que repousa a idéia de destino?

(a) O bem nunca é a causa principal de sofrimento e morte, ele só contribui na medida em que mantém a trágica interação com o mal na alma do herói. A principal fonte de convulsão que produz o sofrimento e a morte é o mal, e mal em sentido mais profundo, não apenas como imperfeição. Seria um mal moral puro. O amor de Romeu e Julieta só leva à morte por causa do ódio entre as duas famílias. A ação criminosa e a perfídia que abrem a ação com um assassinato em Macbeth. Iago é a principal causa da convulsão em Otelo, enquanto Goneril, Regan e Edmundo o são em Rei Lear. E mesmo quando este mal moral não é a maior fonte do trágico dentro da peça, ele subjaz como pano de fundo, pois a situação que levou à desgraça em Hamlet começou com assassinato e adultério. Julio césar é a única peça em que há alguma tentação de identificar uma exceção à essa regra.

Se for do mal que decorre a perturbação violenta da ordem das coisas, essa ordem não pode ser simpática a ele, ou pender neutra diante dele. Tal como um corpo aceita o alimento e rejeita o veneno, esta ordem aceita o bem e rejeita o mal.

(b) Mesmo quando não se é capaz de perceber este mal puro no herói, ele ainda exibirá imperfeição ou mácula expressiva, em características como indecisão, precipitação, orgulho, credulidade etc. Ele corresponderia a um sentido geral de mal e esta característica concorre decisivamente para o conflito e a catástrofe.

Assim, o poder supremo precisa ser hostil a este mal devido a perturbação que ele causa em sua ordem. E essa hostilidade se apresenta por meio da reação intensa e implacável baseada ma expressão mais perfeita do bem, e inclemente na satisfação de seus imperativos (p. 25).

(c) O mal se revela como algo negativo, árido e destrutivo. Ele isola e divide, tendendo a anular não só o bem, seu oposto, mas a si próprio. Aquilo que faz o homem ‘sórdido’ prosperar é o bem (não apenas moral) que há nele. Quando o mal domina este bem e conquista o que deseja, destrói outras pessoas por intermédio da personagem, mas também destrói a própria personagem. Resta ao final apenas um país, uma cidade ou uma família, arrasados e enfraquecidos. Mas vivos pelos princípios do bem, que os anima. “Se a existência dentro de determinada ordem de coisas depende do bem, e se a presença do mal é hostil a esta existência, a alma ou essência dessa ordem deve ser benévola” (p. 25).

Conclui-se então que estes aspectos do mundo trágico são claramente marcados, tratados isoladamente, por uma idéia de destino. Mas deles não sugere, quando tomados isoladamente, uma ordem de justiça poética de proporcionalidade de sofrimentos e merecimentos. Surge uma ordem que atua e reage em resposta a ataques contra si, ou contra a recusa de sujeição a ela. Traz este “imperativo moral”; bem e mal é o que mantém ou perturba esta ordem.

O fato de a tragédia não auferir sentimentos de revolta ou desespero se deve a uma percepção mais ou menos clara de que o sofrimento e a morte são resultado da colisão com esta ordem. Não como sina ou como desígnio de um poder neutro, mas com um poder moral que se coaduna com o que se admira e se respeita nas personagens em si. Por conta disso tem-se uma certa aceitação da catástrofe, ainda que sem emitir juízos de valor sobre as personagens e sem afastar os sentimentos de compaixão, medo e desperdício que o fenômeno trágico desperta.

Essa visão também parece fazer jus aos aspectos do fenômeno trágico que suscitam alguma idéia de destino. Isto porque não se entende que a ordem moral atua por capricho, ou mesmo como um ser humano, mas sim por um imperativo de sua natureza. Uma ordem que atua por força de leis gerais, ou necessidades, que não conhece exceções e age de forma tão impiedosa quanto o destino.

Essa percepção ainda seria incompleta e imperfeita. Ela não corresponde à totalidade dos fatos, e portanto não corresponde completamente às impressões causadas pelo fenômeno trágico. Supõe-se que o sistema que se mostra hostil ao homem e ao mal que há nele é um sistema moral, contudo este mal, e as pessoas em que ele habita, não são externos à ordem. É esta mesma ordem que cria Iago e Desdêmona, ou mesmo a coragem que Iago exibe. Disso decorre que a ordem não é vítima de envenenamento, mas envenena a si mesma. Está claro que o mal é um veneno, e que seu equilíbrio depende do bem. Tampouco se permite auferir que o bem em Desdêmona é conferido pela ordem, e o mal em Iago é origem em si mesmo, do contrário se estaria analisando as obras de Shakespeare com fatos externos a elas.

No mesmo sentido, a idéia de uma ordem moral reagindo ao ataque ou à fuga de sujeição não satisfaz totalmente. Não se pensa que Hamlet simplesmente deixou de satisfazê-la, que Antônio simplesmente peca contra ela ou mesmo que Macbeth simplesmente a ataca. Percebemos, na verdade, que eles são parte desta ordem, e de que o erro ou o mal que demonstram são expressões dela, de forma que ela está em desacato com o próprio bem em si e entra em conflito. Esta ordem, ao fazer as personagens sofrerem e desperdiçarem a si mesmos, está sofrendo o conflito e desperdiçando a si mesma. Para recuperar a paz ela os expulsa, e com isso perde parte de si mesma. E esta parte de sua substância lhe é cara, muito mais valiosa e próxima de sua existência do que os elementos que restam ao final do conflito, tal como Fortibrás, Malcom ou Otávio. Portanto, a tragédia não está na expulsão do mal que a ordem promove, e sim na implicação de que isso é um desperdício do bem (p. 26).

Duas idéias que não podem ser separadas, tampouco conciliadas:

A ordem com a qual o indivíduo mostra-se impotente permanece animada de uma paixão pela perfeição, de outra forma não se pode explicar sua reação ao mal e à perturbação. Mas esta ordem parece carregar o mal em si mesma, e num esforço de superá-lo, ela se contorce em sofrimento a ponto de perder parte de si mesma, de sua própria substância.

Considerações:

Esta teoria não aufere uma idéia de destino, simplesmente. Nem permite entender o mistério da vida que a tragédia carrega. Mas não é esta a finalidade do estudo, ou mesmo da tragédia de Shakespeare. Não se tem por fim explicar ou justificar essa ordem e sua natureza. É parte da tragédia apresentar-se com um doloroso mistério, e no caso de Shakespeare não é possível dizer que se aponta com clareza a direção onde seria possível encontrar a solução.

Todas as referências divinas ou a divindades são partes do caráter de cada personagem que carrega estas referências. Constituem mero recurso dramático. Os sinais emitidos pelo fenômeno trágico correspondem a um fragmento do todo, que não pode ser apreendido pela visão humana. Apresenta-se como contradição e não como verdade fundamental, e não contribui para a solução do mistério.

Comentários

  1. Olá,

    Perdido no mundo das internerd's achei o link p/ teu blog. Gostaria de parabeniza-la pela pesquisa desenvolvida entre Habermas, Orestes e Hamlet.

    Acho lindo quando aproximam-se as artes com a filosofia ou mesmo as ciencias jurídicas.

    Quando tiver um tempinho a mais leio melhor tuas postagens.

    Um abraço.

    ResponderExcluir
  2. Boa noite,

    Jucélio, muito obrigada por seu comentário. Agradeço o interesse pelo assunto pouco comum. Confesso que ele envolve também minha paixão pela tragédia clássica e pelo mundo antigo (que incrivelmente descobri no curso de Direito).

    Ainda estou construindo as idéias e espero quaisquer contribuições ou questões a respeito do material que venho postando, caso tenha interesse em trazê-las.

    Abraço!

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